Uma luta teórica sobre o conceito de imperialismo do início do século XX aos dias atuais
Wanderson Pinheiro
Membro da executiva nacional da Unidade Popular
1. Introdução
O debate imperialismo x ultra-imperialismo¹ foi importante para a economia política no início do século XX. O imperialismo seria apenas mais uma política possível dos países capitalistas que poderia ser alterada, propiciando um desarmamento mundial? Ou seria um estágio do capitalismo com características econômicas novas, que teria a violência como instrumento de dominação? Os desdobramentos desse debate levaram a diferentes táticas no interior do movimento comunista internacional e influenciou posições em torno do nacionalismo/internacionalismo.
No presente artigo fizemos um debate teórico entre os conceitos de imperialismo e ultra-imperialismo, identificando como essa discussão está presente nos dias atuais. Dividimos da seguinte forma; neste tópico 1, realizamos apenas uma introdução; no tópico 2, abordamos o debate imperialismo x ultra-imperialismo ocorrido no século XX; no tópico 3 e 4, debatemos com alguns autores que trabalham com o conceito de imperialismo e novo imperialismo na contemporaneidade, buscando identificar a aproximação destes com o conceito de ultra-imperialismo; no tópico 5, fizemos algumas breves considerações finais.
Inicialmente expusemos o debate teórico ocorrido no seio do movimento comunista internacional no início do século XX que contribuiu para gerar o rompimento da Segunda Internacional Comunista (IC) e o surgimento da Terceira. O conceito de ultra-imperialismo definido por Karl Kautsky² está no centro dessa discussão, sendo contraposto por Lenin com a teoria do imperialismo capitalista. Em nossa compreensão essa foi uma polarização antagônica ocorrida entre autores do chamado “imperialismo clássico” e por isso teve (e tem) uma grande importância.
Nesta discussão, Lenin identifica que houve uma infiltração de teorias liberais no interior do Partido Operário Social-Democrata alemão³, levando este partido a cair no nacionalismo e abandonar o internacionalismo. Segundo Lenin, isso teria gerado uma política de busca pelo apaziguamento das contradições interimperialistas e de conciliação entre a burguesia nacional e o proletariado. Política que contribuiu para levar a classe trabalhadora à guerra imperialista.
Depois disso, promovemos uma análise das táticas dos comunistas referentes aos nacionalismos dos países centrais e periféricos. Procuramos identificar o que seria considerado progressista e o que seria considerado reacionário em relação a essas alianças para o marxismo. Claro que não tiramos grandes conclusões a esse respeito, pois não se trata do objetivo central desse artigo. No entanto, acreditamos que tanto o nacionalismo quanto o liberalismo tem pontos de confluência, estando presentes no debate em questão.
Em seguida apresentamos um conjunto de autores que teorizam sobre o imperialismo nos dias atuais, mapeando a relação existente entre o novo imperialismo e o ultra-imperialismo, situando a discussão no âmbito da economia politica. O objetivo principal foi levantar o debate para os dias atuais e concluir em que medida alguns autores contemporâneos se associam ao conceito de ultra-imperialismo. Demos uma atenção especial a obra O Novo Imperialismo (2011) de David Harvey, um dos mais conhecidos marxistas acadêmicos da atualidade.
Neste artigo fizemos uma análise apenas teórica do tema. Pretendemos em um trabalho posterior avaliar dados da realidade atual para confrontar e observar o quão os conceitos permanecem válidos. Estamos aqui simplesmente verificando se essa discussão segue atual e como os autores contemporâneos percebem o conceito de ultra-imperialismo hoje.
[1]. Kautsky define assim o ultra-imperialismo: “…do ponto de vista puramente econômico, não é impossível que o capitalismo ainda possa existir através de outra fase, a versão de uma cartelização na política externa: a fase de ultra-imperialismo…”. (KAUTSKY, 2020, s/p)
[2]. Foi economista, historiador e um dos maiores dirigentes da Social-democracia Alemã e da II Internacional. Nascido em Praga, em 16 de outubro de 1854.
[3]. Como eram chamados os partidos comunistas no período anterior a 1a Guerra Mundial.
2. Imperialismo x Ultra-imperialismo no início do século XX
Na virada do século XIX para o século XX existiu uma grande preocupação dos comunistas com a guerra econômica e politica entre as potências. Discutiam o que fariam no desenrolar da grande crise que se avizinhava. Lenin fez um estudo pormenorizado da economia capitalista, um levantamento de estatísticas econômicas mundiais e estudou o desenvolvimento dos monopólios com o objetivo de identificar o lugar do imperialismo na história. Também estudou os grandes teóricos do seu período que identificavam o capital financeiro, a exportação de capitais e o parasitismo dos bancos na economia como elementos centrais. Observou que os impérios daquele momento já praticavam um imperialismo capitalista-monopolista, distinto do imperialismo territorial puro.
Assim, Lenin teve como mérito sistematizar as principais característica do imperialismo, apresentando que não se tratava mais apenas do comércio com as colônias e busca por territórios coloniais. A nova divisão internacional do trabalho se dava cada vez mais com a exportação de capitais para os países dependentes e com uma grande concentração de capital que passou a ser monopólico, encerrando a fase do livre comércio. Do ponto de vista geopolítico Lenin apresentava que existia um momento de transição de uma política colonial clássica para uma “política colonial de dominação monopolista dos territórios de um mundo já inteiramente repartido”(LENIN, 2012, p. 124-125). Concluiu então que existia um novo capitalismo com novas qualidades econômicas que se expressavam numa política imperialista de luta por territórios econômicos para exportar seus capitais.
O novo capitalismo tinha uma acumulação de capital superior economicamente onde o livre comércio se transforma em seu contrário e “o que há de fundamental nesse processo, do ponto de vista econômico, é a substituição da livre concorrência capitalista pelos monopólios capitalistas”(LENIN, 2012, p. 123). Historicamente, o imperialismo era o novo capitalismo, o capitalismo em um estágio superior, sendo esta uma etapa de transição que seria negada por meio de uma revolução social que levaria ao socialismo.
Karl Kautsky, um destacado teórico do Partido Social-Democrata alemão e um dos líderes da II Internacional Comunista, apresentou seu artigo Ultra-imperialismo, no qual a divisão internacional do trabalho teria ultrapassado o período pré-imperialista onde o livre comércio era favorável não só a burguesia industrial Britânica, mas também a burguesia dos países agrários. Kautsky apresentou dessa maneira:
O livre comércio era o mais importante meio pelo qual esta zona agrícola poderia ser ampliada continuamente de acordo com as necessidades da indústria Inglesa, assim, todos os lados deveriam ser beneficiados. De fato, os proprietários dos países que exportam para a Inglaterra eram tão inveterados defensores do livre comércio, como os industriais da Inglaterra. (KAUTSKY, 1914, p.02).
No entanto, Kautsky observou que os estados agrários enfraqueciam política e economicamente, perdendo autonomia. O desenvolvimento do mercado para produtos industriais estrangeiros no país agrário levava a destruição da pré-industria destes países, liberando força de trabalho. A desobstrução se dava com a produção de ferrovias, produção agrária, extrativista e mineral (KAUTSKY, 1914, p.02). Na dialética que Kautsky apresentou, a contradição se dava entre países agrários e industriais, onde nesse novo período passou a existir uma política de domínio de territórios agrários. Identificou a nova situação do imperialismo da seguinte maneira:
Mas este doce sonho de harmonia internacional chegou rapidamente ao fim. Como regra geral, as zonas industriais querem subjugar e dominar as zonas agrárias. Isto era verdade antes, já em relação à cidade frente o campo, e é ainda verdadeiro, como um estado industrial frente a um estado agrário (KAUTSKY, 1914, p.02).
Kautsky desenvolveu o raciocínio no qual a exportação de capitais dos países industriais para os países agrários poderia levar aos países agrários a se desenvolver industrialmente, principalmente os que tivessem essa aspiração e mantivessem autonomia política. Isso levaria ao desenvolvimento de concorrência com os velhos países capitalistas e estes tentariam evitar essa concorrência utilizando todo seu poder político. Desta forma “o desejo de impedir essa situação é o motivo para os estados capitalistas subjugarem as zonas agrárias, diretamente — como colônias — ou indiretamente – como esferas de influência, a fim de impedi-los de desenvolver sua própria indústria e obrigá-los a restringir-se inteiramente à produção agrícola” (KAUTSKY, 1914, p.02).
No entanto, Lenin compreendeu que o capital se acumulou e se concentrou em grande magnitude, onde o capital bancário passou a se associar com o industrial, originando o capital financeiro. Este monopólio do capital financeiro tinha como objetivo a valorização do capital a altas taxas no exterior, tendo isto gerado a exportação de capitais que não tinha como único objetivo a extração de matérias-primas, mas principalmente a valorização do capital financeiro com extração de mais valia a nível internacional. A partilha territorial se daria não apenas para disputa de regiões agrárias, mas também por regiões industriais dos novos países, formalmente independentes, mas que deviam ser dominados.
Desta maneira era uma dominação econômico-financeira que geraria uma violência política. No entanto, Kautsky assim define o imperialismo, “O imperialismo é um produto do capitalismo industrial altamente desenvolvido. Consiste na tendência de toda nação capitalista industrial em submeter ou anexar regiões agrárias cada vez mais extensas, independente da nacionalidade de seus habitantes”(KAUTSKY, 1914, p.3).
Lenin considerou a definição de imperialismo de Kautsky limitada, tanto política quanto economicamente. Do ponto de vista econômico Kautsky caracterizou o imperialismo como parte do capital industrial e Lenin identificou que isso era um erro, pois o imperialismo é caracterizado pelo capital financeiro em um estágio superior ao capital industrial. Lenin deu um exemplo histórico para comprovar, disse que assim “não é casual o fato de, precisamente na França, o desenvolvimento particularmente rápido do capital financeiro, coincidindo com o enfraquecimento do capital industrial, ter provocado, a partir da década de 1880, uma intensificação extrema da política anexionista (colonial)” (LENIN, 2012, p.127).
Politicamente Kautsky identificou o imperialismo como uma “política preferida” do capital e não como um novo estágio econômico do capitalismo. Reduziu, portanto, a anexação e a violência a uma política que poderia ser alterada e não como uma tendência econômica estrutural. Lenin apresentou que o novo estágio do capitalismo não era apenas uma tendência a anexação, mas uma “tendência para a violência e para reação”(LENIN, 2012, p.127).
Seguindo o seu raciocínio, Kautsky colocou que a corrida armamentista era uma tendência para a ocupação de zonas agrárias e era isto que promovia a guerra mundial. Porém, essa política não seria indispensável para a sobrevivência do capitalismo e não existiria necessidade econômica para a continuidade da corrida armamentista. Além do mais, argumentava Kautsky, existia uma corrente de oposição crescente das zonas agrárias e dos proletários dos países industrializados contra a militarização, devido ao aumento da carga tributária. E ainda que, o custo de expansão colonial ameaçava a acumulação de capital, consequentemente a própria exportação de capital e o próprio imperialismo.
Assim, o imperialismo era considerado por Kautsky como apenas uma política possível. Seria assim possível uma mudança, mas afirmou que a “mudança só será possível se o imperialismo, a luta de cada grande Estado capitalista para alargar o seu próprio império colonial em oposição a todos os outros impérios da mesma natureza, representar apenas um entre vários modos de expansão do capitalismo”(KAUTSKY, 1914, p.05). Mais a frente, fazendo uma grande abstração no campo puramente teórico, sem dar uma base concreta na realidade, Kautsky estruturou seu conceito de Ultra-imperialismo e o defendeu como nova política possível para desenvolver o capitalismo:
O que disse Marx do capitalismo também pode ser aplicado ao imperialismo: o monopólio cria concorrência e a concorrência gera o monopólio da concorrência. Como a concorrência desenfreada de empresas gigantes, os grandes bancos e multimilionários, abrigando os grandes grupos financeiros que foram absorvendo os pequenos, é necessário para pensar a noção do cartel. Da mesma forma, o resultado da Primeira Guerra Mundial entre as grandes potências imperialistas pode ser a formação de uma federação forte que renunciem a sua corrida armamentista.
Assim, do ponto de vista puramente econômico, não é impossível que o capitalismo ainda possa existir através de outra fase, a versão de uma cartelização na política externa: a fase de ultra-imperialismo, que, naturalmente, devemos lutar contra com a mesma energia, como fazemos contra o imperialismo, mas cujos perigos estarão em outra direção, não no da corrida armamentista e da ameaça à paz mundial 4(KAUTSKY, 1914, p.06).
Acreditamos que aqui Kautsky revelou uma fé na política liberal, substituindo o marxismo pelo liberalismo, pois para ele os monopólios repartiriam o mundo pacificamente impulsionados pelas relações comerciais. Ao abstrair o monopólio, colocou esse como absoluto acima dos conflitos, uma cartelização mundial na economia e na política. Passaria então a existir a união dos imperialismos de todo o mundo e a paz eterna. Porém, isto não era condizente com a realidade, o que existia de fato eram vários países imperialistas que disputavam entre si e promoviam a concorrência entre os seus monopólios. A questão é que Kautsky separou a economia da política, não percebeu que o imperialismo era um novo estágio do capitalismo e acreditou que era possível estabelecer uma política liberal pacifista.
Lenin avaliou que a teoria do ultra-imperialismo era uma fraseologia oca realizada com puras abstrações, sendo uma ruptura com o marxismo revolucionário e uma abertura às teorias liberais. Para ele “isso leva a se dissimularem, a se ocultarem as contradições mais fundamentais do estágio atual do capitalismo, em vez de desvendá-las em toda sua profundidade” (LENIN, 2012, p. 129). Lenin expôs fatos objetivos para demonstrar que as contradições são inseparáveis do capitalismo, apresentou um mundo dividido e com três estados exercendo o domínio mundial imperialista naquele momento: Alemanha, Inglaterra e EUA. A Alemanha possuía poucas colônias; em toda Europa preponderava o fraccionismo político; Na Inglaterra e na América havia uma concentração política elevada e nas colônias o capitalismo começava a se desenvolver. A luta pela América do Sul se acirrava, a partilha da China e a luta entre o Japão e os Estados Unidos estava apenas começando (LENIN, 2012, p.132). Dessa maneira, Lenin questionou: “compare essa realidade – a variedade gigantesca de condições econômicas e políticas, a desproporção extrema na rapidez do desenvolvimento dos diferentes países etc, a luta furiosa entre os estados imperialistas – com a ingênua fábula de Kautsky sobre o ultra-imperialismo ‘pacífico’ ” (LENIN,2012, p.132).
Fazendo uma análise com base no desenvolvimento das forças produtivas e na divisão da sociedade em classes sociais a nível internacional, Lenin percebeu que os países imperialistas extraiam maiores taxas de lucro com o investimento no exterior promovendo a superexploração dos trabalhadores nos países explorados. Assim, podiam fazer uma política para manter a classe trabalhadora interna controlada, cedendo parcialmente a suas demandas. Essa questão econômica dividia o proletariado em vários níveis e dava melhores salários aos operários centrais dos países imperialistas, o que daria base material a uma “aristocracia operária”. Esta parcela da classe operária tinha algo a perder e por isso não fazia greve. Lenin concluiu que essa era a raiz econômica, em geral, que ocasionou a infiltração do liberalismo no interior da classe operária alemã. Por isso, passou a ocorrer uma conciliação política entre os trabalhadores e a burguesia no plano nacional. Surgiu assim, uma corrente no interior do marxismo que era socialista em palavras, mas social liberal de fato.
O apaziguamento da luta de classes no interior dos países imperialistas, fez com que alguns comunistas passassem a ter uma grande ilusão e viram uma aliança com a burguesia nacional como positiva. Deixaram-se, portanto, ir a “reboque” da burguesia nacional e ao comporem os governos não queriam colocar em risco a perda cargos nos ministérios e parlamentos. Este foi o caso da maioria dos deputados do Partido Operário Social-Democrata alemão na véspera da primeira guerra mundial, quando votaram pelos créditos de guerra5 para o Estado realizar uma guerra imperialista. Lenin acompanhou toda essa situação e enxergou a necessidade de resgatar o marxismo revolucionário. Orientou o seu partido a conclamar os trabalhadores a saírem das trincheiras de guerra e realizarem uma luta de classes contra a burguesia do seu próprio país.
Dessa forma, a discussão entre nacionalismo e internacionalismo ocorreu tanto internamente na Rússia, quanto internacionalmente entre os comunistas. Horace B. Davis (1978) diz que tanto Bolcheviques quanto Menchevique professavam o internacionalismo antes da 1a guerra mundial, mas observa que no início da guerra os mencheviques apoiaram o governo e mesmo os bolcheviques exitaram, mas Lenin teria lançado da Suíça o slogan da ‘derrota da pátria’ e tentado reunir os sociais-democratas de esquerda de todos os países pelo slogan ‘nenhuma anexação forçada, nenhuma anexação punitiva’, relacionando isso com a revolução social (DEVIS, 1978).
Aproveitando o ensinamento de Lenin, Josef Stálin, ao escrever os documentos para a construção da URSS, observou que existiam desvios de membros do Partido Comunista Bolchevique ao nacionalismo no interior do seu próprio país. Percebeu que o desenvolvimento desigual das nações no interior da URSS, fazia com que existissem desigualdades econômicas e culturais de fato, que precisavam ser corrigidas. Porém, muitos funcionários do partido se desviavam ao nacionalismo grão russo e oprimiam as nações mais fracas, fechando os olhos aos seus interesses materiais. Estas nações menores, consequentemente, reagiam com politicas chauvinistas6 conflituosas (STÁLIN, 1979). Este é mais um exemplo de como os interesses nacionalistas permeiam os partidos comunistas, porém para Lenin os interesses nacionais deveriam se subordinar ao internacionalismo proletário, dessa forma para ele “o caráter de subordinação do problema nacional ao ‘problema operário’ não oferece dúvidas para Marx”(LENIN, apud STÁLIN, 1976, p. 146).
Vivenciando um período crítico de guerra imperialista, Lenin decidiu traçar uma fronteira entre o marxismo revolucionário e o marxismo liberal. Apresentou duras críticas a Kautsky por este defender a democracia em geral e criticar a ditadura do proletariado aplicada na URSS pelo Partido Comunista Bolchevique. Segundo Lenin, a ditadura do proletariado nada mais era que a aplicação da violência revolucionária, parteira da nova sociedade socialista, contra a minoria opressora, com o objetivo de destruir o Estado burguês e construir o Estado socialista. Existia uma guerra imperialista em curso e Lenin considerou que apoiar a burguesia na guerra seria uma traição à classe trabalhadora e um abandono da prática revolucionária. Por isso, realizou a ruptura com os sociais-democratas alemães e construiu a III internacional. Lenin caracterizou assim a posição de Kautsky sobre uma democracia pura:
Kautsky deturpou da forma mais inaudita o conceito de ditadura do proletariado, transformando Marx num vulgar liberal, isto é, desceu ele próprio ao nível do liberal que lança frases vulgares acerca da democracia pura, escondendo e esbatendo o conteúdo de classe da democracia burguesa, esquivando-se acima de tudo à violência revolucionária por parte da classe oprimida. Quando Kautsky interpretou o conceito de ditadura revolucionária do proletariado de modo a fazer desaparecer a violência revolucionária por parte da classe oprimida contra os opressores, de fato bate o recorde mundial da deformação liberal de Marx (LENIN, 2020, p.18).
Além de apresentar um debate teórico consistente, Lenin adotaria uma tática política alicerçada no internacionalismo proletário e na luta de classes, que se demonstrou correta na medida em que culminou com a revolução socialista e a tomada do poder pela classe trabalhadora. Além disso, a teoria do imperialismo de Lenin parece mais plausível na medida em que a concorrência, entre monopólios e estados nação, promoveu a 1a e 2a guerra mundial. Em nossa compreensão essas duas guerras são fatos inquestionáveis que revelam as contradições imperialistas como elas são. O mais trágico foi terem ocorrido logo em seguida ao debate entre imperialismo e ultra-imperialismo.
Lenin indicou que Kautsky saiu do campo do marxismo revolucionário, na medida que negou a revolução violenta e a ditadura do proletariado, defendendo a democracia em geral, caracterizada por Lenin como ditadura da burguesia. Além disso, Lenin observa que Kautsky se somou com a burguesia nacional, submetendo o internacionalismo ao nacionalismo.
Vale ressaltar que Lenin não era contra fazer alianças pontuais com setores da pequena burguesia ou mesmo da burguesia contra o imperialismo, desde que o partido da classe trabalhadora tivesse sua ação independente preservada e não deixasse a revolução proletária submissa aos interesses da burguesia. Davis (1978) fez uma avaliação da tática da Internacional Comunista (IC) em relação ao nacionalismo dos países coloniais e observou que taticamente tiveram momentos de aliança positiva nesse processo. Identificou erros e acertos, mas mostrou que a IC fez alianças táticas com o nacionalismo dos países coloniais com o objetivo de libertar as nações do imperialismo. No início da década de 1920, quando os partidos comunistas estavam sendo fundados na Ásia, África e América Latina, prevaleceu uma tática de frente nacional unida contra o imperialismo. Porém, depois essa posição oscilou, com Stálin, em maio de 1925, adotando uma política de “bolchevização” da Internacional que “apontou que a burguesia nas colônias havia se dividido em uma ala revolucionária e uma ala reacionária” (STÁLIN, apud DAVIS, 1978, p. 219). Mais a frente com a chegada dos nazistas ao poder na Alemanha, em 1935, foi adotada a política de Frente Única contra o fascismo. (DAVIS, 1978, p.221).
A luta da classe operária nos países imperialistas teria como objetivo o fracasso das suas burguesias na guerra, associada a luta pela tomada do poder. Outra parte da tática revolucionária estaria na luta dos países coloniais oprimidos. Nesse sentido Stálin afirmou que Lenin acreditava na “(…) existência de capacidade revolucionária no seio do movimento de libertação nacional dos países oprimidos e considera possível utilizá-la no interesse da derrubada do inimigo comum, o imperialismo (…)Daí a necessidade do apoio, apoio decisivo e ativo, por parte do proletariado, ao movimento de libertação nacional dos povos oprimidos e dependentes (STÁLIN, s/p, 2020). Assim, Stálin e Lenin, consideravam a luta nacional dos países oprimidos, parte da estratégia e tática da revolução internacional. Estes acreditavam que setores da burguesia dos países oprimidos poderiam ter aspectos revolucionários contra o imperialismo, auxiliando a revolução mundial. Porém, socialistas dos países centrais, que apoiaram a burguesia dos seus países para vencer a guerra, seriam considerados traidores da revolução. A questão é apresentada assim por Stálin:
A luta do emir do Afeganistão pela independência de seu país é, objetivamente, uma luta revolucionária, apesar das ideias monárquicas do emir e dos seus adeptos, porque essa luta enfraquece, decompõe e mina o imperialismo. Por outro lado, a luta de certos “ultra” democratas e “socialistas”, “revolucionários” e republicanos do tipo de, por exemplo, Kerenski e Tsereteli, Renaudel e Scheidemann, Tchernov e Dan, Henderson e Clynes, durante a guerra imperialista, era uma luta reacionária, porque tinha por objetivo adornar artificialmente, consolidar e levar ao triunfo o imperialismo (STÁLIN, s/p, 2020).
Desta forma, Kautsky, ao adotar uma politica de aliança com a burguesia nacional da Alemanha que era um país opressor, apoiando os créditos de guerra, adotaria uma posição nacionalista liberal, contrária aos interesses de classe do proletariado a nível internacional. Seu conceito de Ultra-imperialismo teve como desdobramento concreto a adoção de uma politica que jogou pela estabilidade do imperialismo e a manutenção do capitalismo.
A aplicação da dialética materialista ao estudo científico da realidade econômica fez com que Lenin produzisse o que, em nossa compreensão, foi a definição mais precisa sobre o imperialismo. Para ele resumidamente “o imperialismo é o estágio monopolista do capitalismo”. (LENIN, 2012, p.125). Assim, o imperialismo tem base na economia capitalista, não sendo apenas uma política de capitalistas “maus” que precisam ser combatidos moralmente. Pelo contrário, o imperialismo e suas contradições são estruturais, surgiram historicamente no início do século XX e não poderiam ser abolidas pelo idealismo.
[4]. Grifo nosso.
[5]. No dia 4 de agosto de 1914, foram aprovados os créditos de guerra para o império alemão. O grupo parlamentar comunista estava dividido sobre a guerra. Friedrich Ebert e mais 96 representantes concordaram com os créditos de guerra e 14 parlamentares se manifestaram contra. Porém votaram a favor, em nome da disciplina, aprovando os créditos. Dois dias antes, os Sindicatos decidiram renunciar o direito de greve e da reivindicação salarial em tempos da guerra.
[6]. Chauvinismo é o termo dado a opiniões exacerbadas e agressivas em favor de um país ou grupo.
3. Novo imperialismo e ultra-imperialismo
Procuramos neste tópico levantar diversos autores sobre o imperialismo nos dias atuais. Alguns reivindicam a existência de um novo imperialismo e outros afirmam que o imperialismo clássico permanece atual. Mesmo possuindo divergências em suas teorias, os autores que defendem o novo imperialismo possuem pontos em comum importantes, cabendo aqui destacar apenas o recorte histórico do final dos anos de 1970 e início dos anos de 1980 como ponto de partida para o novo imperialismo, tendo o neoliberalismo como base econômica. Ressaltamos que não pretendemos entrar no conteúdo específico da teoria de cada autor, pois não caberia nesse trabalho. Apenas identificaremos como eles se posicionam em função do ultra-imperialismo.
Um importante autor sobre o novo imperialismo, Victor Gordon Kiernan, que escreveu o livro Estados Unidos, o Novo Imperialismo, prefaciado por Eric John Ernest Hobsbawm, identificou o novo imperialismo coincidindo com o imperialismo dos EUA. Kiernan apresentou as características não territoriais como sendo a base do novo imperialismo. Considerou que a Inglaterra foi o velho imperialismo, marcado pela colonização, e que o novo imperialismo não territorial surge acima de tudo e de todos. Colocou que houve um grande acúmulo de capital no pós-guerra e que continuam os investimentos diretos no exterior (KIERNAN, 2009). Kiernan é sem dúvida um dos importantes historiadores do imperialismo, sendo reconhecido assim por Hobsbawm. Porém, devido a conjuntura atual, acredita que a partir do imperialismo norte-americano deixou de ocorrer contradições interimperialistas, posicionando-se favorável a teoria do ultra-imperialismo:
[…] E apesar de muitas previsões marxistas calamitosas, qualquer perspectiva de conflito armado entre as nações desenvolvidas pareceu estar desaparecendo. Elas têm medo de se desgastarem muito e de abrirem a porta para o socialismo, e elas sabem que qualquer loucura desse tipo seria vetada pelos EUA. Também há nessa nova harmonia um elemento do ‘ultra-imperialismo’ previsto por Kautsky (KIERNAN, 2009, p.315).
Existe um conjunto de autores que, assim como Kiernan (2009), também perceberam a globalização e o neoliberalismo sendo uma espécie de “ultra-imperialismo”. Para Hardt e Negri, ocorreu o fim do imperialismo e emergiu um império, que não estabelece um centro territorial, mas incorpora o mundo dentro das suas fronteiras. Após a guerra do Vietnã o mercado mundial foi reorganizado num “mercado mundial que destruiu as fronteiras fixas e os processos hierárquicos do imperialismo europeu7” (HARDT e NEGRI, 2001, p.272). Estes disseram que o Estado-nação não é mais fundamental para a moderna produção e comercialização, sendo apenas um pequeno obstáculo. Foram incisivos: “A história das guerras imperialistas, interimperialistas e anti-imperialistas acabou. O fim dessa história introduziu um reino de paz” (HARDT e NEGRI. 2001, pg. 208). Também para Gowan, Panitch e Shaw (2001), não existiriam mais rivalidades imperialistas. Para Panitch e Gidin foi conformada a coexistência do império americano informal com diversos estados gerenciando as contradições do capitalismo global (PANITCH, GIDIN, 2002). Ressaltamos aqui aqueles que mais se aproximam da teoria do ultra-imperialismo.
Trazendo esse debate para a atualidade e divergindo dos autores anteriores, os gregos Spyros Sakellaropoulos e Panagiotis, consideram que o imperialismo clássico permanece atual e a novidade do imperialismo contemporâneo seria que este é um imperialismo não territorial, restando buscar uma nova teorização para tal. Os autores afirmam a manutenção do imperialismo com as características essenciais traçadas por Lenin. Assim, avaliaram que:
A relação entre imperialismo e expansão territorial não pode explicar o surgimento dos Estados Unidos como principal formação social capitalista no século XX, nem explicar o surgimento, especialmente na época do pós-Segunda Guerra Mundial, de um imperialismo baseado na internacionalização do capital e nas relações hegemônicas dentro de uma cadeia imperialista de Estados-nação territorialmente soberanos (SAKELLAROPOULOS, PANAGIOTIS, 2015, p.96).
Ellen Wood colocou a contradição do econômico e do não-econômico, do capitalista e não capitalista do mundo como base do imperialismo. A autora afirmou que quando Lenin indica que o conflito internacional se daria entre estados imperialistas, ele o faz em um momento em que a rivalidade ocorreria com divisão e redivisão de um mundo majoritariamente não capitalista. Wood apresentou ainda que o domínio americano fez surgir o império capitalista, sendo isto um fato muito recente que levou ao fim das contradições interimperialistas.
Em relação a segunda guerra mundial, Wood (2005) considerou que esta foi a última guerra entre os poderes capitalistas, e após a guerra fria: “…o objetivo militar mudou decisivamente, longe dos objetivos relativamente bem definidos de expansão imperial e rivalidade interimperialista, mas com o objetivo aberto de policiar o mundo no interesse do capital” (WOOD, 2005, p.129). Desta maneira, não existiriam mais contradições interimperialistas, mas apenas uma polícia global para assegurar a manutenção do capitalismo.
Nestes dois pontos acima, existe uma aproximação com a economia política defendida por Kautsky o qual teoriza a contradição dos países industriais com os agrários como a base da política imperialista territorial, sendo portanto dispensável aos capitalistas em outra conformação das forças produtivas. Wood (2005) apresentou contradição semelhante entre o econômico e o não-econômico, com a busca por territórios coloniais sendo a base do imperialismo e, portanto, com o fim do colonialismo ocorreria o fim do imperialismo. Assim, não haveria mais grandes contradições, sendo suficiente um policiamento.
No entanto, Wood avaliou que foi o Estado que criou as condições para o capital sobreviver, sendo este a única instituição extraeconômica indispensável ao capital. Assim, “o novo imperialismo, em contraste com as formas mais antigas de império colonial, depende mais do que nunca de um sistema de múltiplos estados nacionais mais ou menos soberanos” (WOOD, 2005, p. 141). Concluímos que Wood (2005) apresentando o imperialismo militar com o objetivo policiar o mundo, sugere o aparecimento de uma espécie de poder mundial, gerado para promover um capitalismo.
Os estados independentes sendo repartidos é um fato histórico que remonta ao século XIX, quando o império britânico dominou a América do Sul. Lenin percebeu esse fato e sabia que o domínio principal do imperialismo era mais econômico do que territorial. Compreendia a existência do poder dos monopólios e do capital financeiro, e que a concorrência já se dava pela repartição de nações independentes. Entendemos que Wood (2005) confunde o imperialismo colonial territorial com o imperialismo capitalista que mantém a luta pelos territórios e se militariza para isso.
Contradizendo o que Wood afirmou, Alex Callinicos avaliou que as rivalidades interimperialistas “continuam sendo uma característica do sistema internacional contemporâneo…”. Considera, assim, improvável que o século XXI “seja caracterizado por um concerto de poderes consensual, aproveitando a prosperidade neoliberal” (CALLINICOS, 2009, p. 226). Buscou analisar o significado do crescimento chinês por meio de atividades mutuamente benéficas para China e EUA. Observou que existe a manutenção da hegemonia americana sobre as regiões do capitalismo, mas chamou a atenção para um fato, ao qual Bush estaria alerta em 2002 quando afirmou:
Várias potências estão agora no meio de uma transição interna – principalmente a Rússia, a Índia e a China; nossas forças serão fortes o suficiente para dissuadir adversários com potencial de perseguir uma formação militar na esperança de superar ou igualar o poder dos EUA” (BUSH, apud CALLINICOS, 2009, p. 218).
É importante destacar que este livro de Callinicos, Imperialism and Global Polítical Economy, foi escrito em 2009 e de lá aos dias a China tem crescido ininterruptamente. Ele acertou na sua previsão de que “é provável que a expansão econômica da China, nas próximas décadas, a torne o Estado mais poderoso da região mais dinâmica do capitalismo mundial” (CALLINICOS, 2009, p. 219). E logo em seguida, colocou que:
Além disso, a ascensão da China já está desestabilizando o padrão existente de relações globais. O complexo de Wall Street, o Tesouro dos EUA e o FMI tornaram-se cada vez mais inquietos com a expansão dos investimentos chineses pelo sul global, o que dá aos países mais pobres acesso a capital que não requer confinamento dentro das condicionalidades neoliberais exigidas pelo Banco Mundial em troca de seus empréstimos (CALLINICOS, 2009, p.219).
Podemos perceber que existe uma tendência dos autores do novo imperialismo acreditarem que a supremacia neoliberal dos Estados Unidos promoveu o Ultra-imperialismo na atualidade. Vamos dar uma maior atenção a David Harvey o qual trataremos no próximo tópico.
[7]. Todos os textos em Inglês foram traduzidos livremente pelo autor.
4. David Harvey e o novo imperialismo
David Harvey trouce importantes contribuições ao debate do imperialismo, sendo esse autor um dos mais importantes teóricos acadêmicos que estuda Marx na atualidade. Apresentou o imperialismo como a acumulação por espoliação, que seria uma espécie de acumulação primitiva (não produtiva) que permaneceria acontecendo. A espoliação estaria sendo realizada principalmente por meio das privatizações, da espoliação financeira e dos direitos de propriedade intelectual com licenciamento de material genético. Esse desejo de espoliação foi gerado pela necessidade de campo para investimento do capital sobreacumulado nos países centrais (HARVEY, 2011).
Compreendemos que essa observação de Harvey é correta, pois o imperialismo possui o desejo aventureiro de expropriar, herdado da aristocracia imperial, que reaparece no capital financeiro especulativo em um grau elevado. Promovem, assim, a expropriação de inúmeras empresas valiosas, por meio da corrupção da burguesia interna dos países periféricos, para investir seu capital sobreacumulado, sem criar nada novo. Assim, Harvey colocou que “o que a acumulação por espoliação faz é liberar um conjunto de ativos (incluindo força de trabalho) a custo muito baixo (e, em alguns casos, zero). O capital sobreacumulado pode apossar-se desses ativos e dar-lhes imediatamente um uso lucrativo” (HARVEY, 2011, p.124). E mais adiante, acrescentou:
Como a privatização e a liberalização do mercado foram o mantra do movimento neoliberal, o resultado foi transformar em objetivo das políticas do Estado a ‘expropriação das terras comuns’. Ativos de propriedade do Estado ou destinado ao uso partilhado da população em geral foram entregues ao mercado para que o capital sobreacumulado pudesse investir neles, valorizá-los e especular com eles (HARVEY, 2011, p.130-131).
No entanto, Harvey fez uma crítica a Lenin e Rosa Luxemburgo por estes considerarem o capitalismo limitado. Apresentou que não existe essa limitação e que o capitalismo pode promover um crescimento ilimitado, levando em consideração a possibilidade de projetos financeiros de longo prazo. Assim destacou:
Como a expansão geográfica com frequência envolve investimento em infraestruturas físicas e sociais de longa duração (por exemplo, em redes de transporte e comunicação, bem como na educação e pesquisa), a produção e a reconfiguração das relações espaciais oferecem um forte meio de atenuar, se não resolver, a tendência à formação de crises no âmbito do capitalismo8 (HARVEY, 2011, p.130-131).
Neste ponto acreditamos que Harvey cometeu um erro, pois colocou os investimentos de longo prazo como capazes de resolver o problema das crises do capitalismo, não levando em conta que essas crises são estruturais. Pensamos que a sobreacumulação do capital existente, tem na sua raiz numa crise de superprodução relativa de mercadorias que encontram dificuldade de serem consumidas. O capital financeiro é produzido num alto grau de desenvolvimento das forças produtivas e as relações assalariadas de produção baixam de maneira absurda o valor da força de trabalho, não permitindo que essas mercadorias sejam realizadas. Assim, são produzidos cracks na esfera financeira e produtiva, como ocorreu na crise de 2008 a 2010.
Harvey entendeu que a sobreacumulação leva ao expansionismo, de forma a buscar investimentos rentáveis, o que leva à busca de reconfiguração no tempo e no espaço causando as contradições entre o poder político territorial e o poder capitalista. Mas, segundo ele, isso poderia ser impedido se as classes sociais internas permitissem a aplicação do capital excedente em reforma social e investimentos em infraestrutura no plano doméstico (HARVEY, 2011, p.145).
Avaliando a invasão militar do Oriente Médio feita por Bush, Harvey considerou que esta teve com o objetivo de manter o controle firme das reservas de petróleo. Isso só ocorreu porque a realização de reformas e o investimento em infraestrutura foram bloqueados pela classe social interna. Este fato teve um papel “na conversão da política norte-americana e uma adoção cada vez mais declarada do imperialismo” (HARVEY, 2011, p. 147). Harvey expõe que os investimentos em reformas nacionais poderiam ser capazes de solucionar as crises no capitalismo, o que consideramos um equívoco:
Nada disso teria, entretanto, assumido a importância que hoje tem caso não tivesse surgido problemas crônicos de sobreacumulação de capital por meio da reprodução expandida, a que se associou uma recusa política de tentar uma solução para esses problemas por meio da reforma interna (HARVEY, 2011, p.148).
Além disso, a prática imperialista não pode ser restrita à acumulação por espoliação ou expropriação “extraeconômica”. O imperialismo capitalista é uma fase superior de acumulação do capital, em que o capital amadureceu e propiciou hegemonia ao capital financeiro. Portanto, a exportação de capitais para explorar a mais valia no exterior é um veio poderoso do imperialismo. A lei do valor-trabalho explica onde são produzidos novos valores. Por isso, não só as privatizações foram promovidas pelo neoliberalismo, mas também a exportação de capitais dos monopólios produtivos. Estes destruíram indústrias locais e concentraram a produção de amplos setores de mercadorias nas mãos dos monopólios. Isto ocorreu também no campo, onde os principais commodities agrários passaram para as mãos do agronegócio estrangeiro. Tudo isso foi objeto para investimento do capital sobreacumulado, também produtivamente.
Harvey aproximou-se da teoria do ultra-imperialismo na medida que considera o imperialismo apenas uma das políticas dos estados capitalistas, que cometem um “erro” ao fazer uma “recusa política de tentar uma solução para esses problemas por meio da reforma interna” (HARVEY, 2011, p.148). Harvey colocou que são os estados que regulam seus negócios e criam uma base para “desenvolvimentos geográficos desiguais, lutas geopolíticas e diferentes formas de política imperialista” e que “Estados diferentes produzem imperialismos diferentes” (HARVEY, p.149). Imaginou que as distintas políticas imperialistas poderiam ser alteradas, não sendo o imperialismo necessário a economia monopolista que se desenvolve.
Para Harvey a contradição principal não seria entre os grupos de monopólios e estados nacionais, mas sim entre a lógica territorial e a lógica capitalista. A lógica capitalista seria hegemonizada por uma classe transnacional de financistas para os quais seus interesses financeiros não se importam com a perda da hegemonia produtiva dos EUA. O capitalismo transnacional seria universal, “essa classe pouco ligava para lealdades, tradições nacionais ou vinculada ao lugar; poderia ser multirracial, multiétnica, multicultural e cosmopolita”. (HARVEY, p.152). Por outro lado, surgiu como reação ao cosmopolitismo do capital financeiro “o racismo e o nacionalismo que um dia criaram a coesão da nação estado e do império, ressurgiram no nível da pequena burguesia e da classe trabalhadora como arma de organização contra o cosmopolitismo do capital financeiro” (HARVEY, p. 153). A questão seria, para Harvey, que tipo de imperialismo essa contradição poderia produzir.
A atual política hegemônica imperialista teria surgido da união do grupo neoconservador com a indústria militar dos EUA, segundo Harvey. Os neoconservadores se encontravam próximos ao poder quando George W. Bush foi eleito e a partir dos ataques de 11 de setembro de 2001 assumiram um papel protagonista no governo. Implementaram então um projeto imperial neoconservador que pretendia construir um Iraque liberal, mantê-lo militarizado e utilizar seu petróleo. O exemplo do liberalismo no Iraque seria fundamental para promover a dominação mundial dos EUA onde “nesse mundo organizado de uma Pax Americana, espera-se que todos os setores possam florescer sob a proteção do capitalismo de livre mercado”(HARVEY, p.161).
No entanto, o imperialismo neoconservador dá continuidade a acumulação por espoliação, passando a ser questionado externamente e então desiste da hegemonia pelo consenso. Assim, passa a alimentar movimentos antiglobalização que em alguns países promoveram novas composições políticas, como Lula no Brasil, entrando em contradição e revertendo “o terreno no qual pode operar o neoliberalismo” (HARVEY, p.163). Os EUA voltam-se para o racismo como ligação do nacionalismo com o imperialismo, porém o nacionalismo em ascensão entraria em contradição com a lógica capitalista neoliberal. Os prejuízos do projeto imperialista ultraconservador seriam os custos da própria guerra e o aprofundamento da dívida pública, o que tornava a economia vulnerável à fuga de capitais. Tudo isso levaria ao capital financeiro buscar mudanças na política, pois “A lógica do capital vai julgar a mudança de regime em Washington necessária a sua própria sobrevivência” (HARVEY, p.166).
David Harvey defendeu uma melhor política imperialista fundada na lógica do capital e não territorial, considerou isso o “possível” na conjuntura que se encontrava. Observou no período em que escreveu, que o fechamento da economia em blocos foi uma configuração que produziu a crise do capitalismo global na década de 1930 e 1940, mas que ninguém desejava que isso voltasse para dar razão a Lenin, “o que torna a lenta mas discernível marcha rumo a essa resolução desconcertante” (HARVEY, p. 167). Pensamos que uma política liberal menos agressiva no imperialismo não é possível, visto que a disputa entre os grandes monopólios é o que promove a disputa por áreas de influência entre os estados capitalistas.
Dando continuidade à análise, Harvey concluiu que, devido a sobreacumulação do capital, a continuidade da política neoliberal se daria com acumulação por espoliação, mas isso só seria possível se “na China se desencadeia uma taxa de crescimento econômico e de desenvolvimento infraestrutural público capaz de absorver grande parcela de excedente de capital no mundo”(HARVEY, p. 167). Mas alertou que, ao isso ocorrer, geraria uma calamidade na economia dos EUA cimentada em influxos de capital. Nessa situação os EUA seriam tentados a usar seu poder para provocar um recuo da China “fazendo eclodir um conflito geopolítico que vai atingir, na hipótese mais conservadora, a Ásia Central e que talvez se amplie num conflito mais global” (HARVEY, p. 167). Aqui Harvey percebeu a movimentação do capital para China com intuito de investir excedente sobreacumulado e não descartou a possibilidade de uma guerra interimperialista.
Harvey ao considerar o imperialismo como políticas possíveis, se afasta de Lenin que considerou o imperialismo uma fase econômica do capitalismo monopolista, gerando contradições e disputas entre estados, não sendo possível pensar numa política menos exploradora e violenta. Se aproximou, neste ponto, de Kautsky, que avaliou que uma nova política do imperialismo surgiria com base na mesma economia capitalista. Segundo Harvey, deveria ser perseguida uma política de desenvolvimento keynesiana a nível internacional cujo efeito seria o retorno de uma política imperialista “New Deal” que seria “mais benevolente, de preferência alcançando por meio do tipo de coalizão de potências capitalistas que Kautsky concebeu há tanto tempo”. (HARVEY, p. 168). Harvey seguiu aqui fazendo uma defesa de um novo New Deal e apresenta assim a sua economia política:
Isso significa libertar a lógica da circulação e acumulação do capital de seus grilhões neoliberais, reformulando o poder do estado segundo linhas bem mais intervencionistas e distributivas, conter os poderes especulativos do capital financeiro e descentralizar ou controlar democraticamente o poder avassalador dos oligopólios e monopólios (de modo particular, a influência nefária do complexo industrial militar) de ditar tudo, dos termos do comércio internacional a tudo que vemos, lemos e ouvimos nos meios de comunicação. (HARVEY, p.167-168).
Embora se aproxime do conceito de ultra-imperialismo, David Harvey não desconsidera as possibilidades guerras e conflitos no centro do imperialismo. Observou, em 2001, a movimentação de capitais para a China, e vislumbrou possíveis desdobramentos que agora se concretizam. Resta saber se a calamidade que se abate nos EUA, fará “eclodir um conflito geopolítico que vai atingir, na hipótese mais conservadora, a Ásia Central” (HARVEY, p. 167).
Harvey expôs como dúvida a conceitualização de novo imperialismo, mostrando que talvez seja apenas o imperialismo nos dias atuais, pois “o novo imperialismo mostra não passar da revisitação do antigo, se bem que num tempo e nuns lugares distintos. Resta examinar se essa é uma conceitualização adequada das coisas” (HARVEY, 2011, p.148). Neste ponto é necessário analisar se existiram mudanças qualitativas no imperialismo que sustentem o conceito de novo imperialismo, esta é uma questão importante para ser avaliada em outro momento.
[8]. Grifo nosso.
5. Considerações finais
Consideramos que o debate teórico entre a teoria marxista do imperialismo e a teoria do ultra-imperialismo é retomado na atualidade, principalmente após a década de 1980. Um dos aspectos centrais do ultra-imperialismo é defendido por diversos autores, que consideram que as condições atuais afirmam que a paz mundial, por diversos motivos, vai sempre prevalecer. É importante ressaltar que isso ocorre entre a maioria dos autores que conseguimos pesquisar durante este trabalho, tendo possivelmente uma tendência majoritária a interpretação do ultra-imperialismo na atualidade.
Hardt e Negri (2001), Gowan, Panitch e Shaw (2011), Panitch, Gidin (2002), Kiernan (2009) e Wood (2005) consideram que o neoliberalismo e a globalização se constituíram em elementos estruturais e trouxeram mudanças qualitativas ao sistema capitalista. Mudanças estas que promoveram uma nova versão do ultra-imperialismo.
David Harvey (2011) apresenta os imperialismos como políticas possíveis dos estados capitalistas e, desejando um mal menor, propõe reformas internas nos países imperialistas como saída para a crise. No entanto, considera a possibilidades de conflito no centro do capitalismo, tendo a China no centro de sua preocupação. Posiciona-se sobre o imperialismo desta maneira: “Se assim é, o novo imperialismo mostra não passar da revisitação do antigo, se bem que num tempo e num lugar distintos. Resta examinar se essa é uma conceitualização adequada das coisas” (HARVEY, 2011, p.148). Chama a atenção para o aspecto do domínio do capital financeiro estendido para “apropriação de terras comuns” nos países dependentes.
Callinicos (2009) e Sakellaropoulos e Panagiotis (2015), consideram que o conceito de imperialismo descrito por Lenin permanece atual e pontuam apenas mudanças quantitativas. Concordamos que o imperialismo deixou de ser fundamentalmente territorial, como apresentam Sakellaropoulos e Panagiotis (2015). Contudo, o imperialismo passa a defender os territórios econômicos por meio da estratégia neocolonial de dominação indireta.
Nos anos de 1980 os EUA conseguiram impor sua hegemonia econômica e política em nível mundial. Com dissolução da URSS e com o processo do Consenso de Washington isto se aprofundou. Foram abertas as fronteiras comerciais e financeiras dos países dependentes e realizados grandes volumes exportações de capital dos países imperialistas para periferia, com as privatizações de empresas estatais ocupando um lugar central. Tudo isso fez com que fosse promovida uma nova divisão internacional do trabalho. Estando muito à frente dos demais estados imperialistas, tanto econômica quanto militarmente, os EUA seriam uma hegemonia (para alguns) absoluta.
Levantamos aqui, como hipótese para um futuro trabalho, que autores do novo imperialismo se influenciaram por uma dinâmica conjuntural dos anos 1980 e 90, aderindo, em diversos níveis, ao conceito de ultra-imperialismo. Porém, as contradições interimperialistas voltaram à tona. Isso ocorre, principalmente, com a ascensão da China no tabuleiro internacional, tendo esta se desenvolvido e dado um salto de qualidade na cadeia do capitalismo.
6. Referências bibliográficas
CALLINICOS, Alex. Imperialism and Global Polítical Economy. Polity Press: Cambridge/ Meiden, 2009;
GOWAN, Peter; PANITCH, Leo; SHAW, Martin. The State, Globalisation and The New Imperialism: a roundtable discussion. Historical Materialism, Leiden, v. 9, p. 3-38, 2001;
HARDT, Michael; NEGRI, Antônio. Império. Tradução Berilo Vargas. Rio de Janeiro: Record, 2001;
HARVEY, David. O Novo Imperialismo. São Paulo: Edições Loyola, 5ª. Ed, 2011;
KAUTSKY, Karl. Ultra-Imperialismo. 1ª. edição: Die Neue Zeit, 11 de Setembro de 1914. Extraído de https://www.marxists.org/portugues/kautsky/1914/09/11-1.htm em 06/11/2019.
KIERNAN, Victor Gordon. Estados Unidos, O Novo Imperialismo. Da Colonização Branca à Hegemonia Mundial. Ed.Record: Rio de Janeiro/ São Paulo, 2009.
LENIN, V.I. Imperialismo Estágio Superior do Capitalismo. São Paulo: Expressão Popular, 1a. Ed, 2012.
_________. A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky. Retirado do site Le Livros, acesso no link: https://lelivros.love/book/baixar-livro-a-revolucao-proletaria-e-o-renegado-kautsky-vladimir-ilitch-lenin-em-pdf-epub-mobi-ou-ler-online/#tab-additional_information, em 19/11/2020
PANITCH, Leo; GINDIN, Sam. Gems and baubles in empire. Historical Materialism, v. 10, n. 2, p. 17-43, 2002.
STÁLIN, J. O marxismo e o problema nacional e colonial. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas. 1979.
__________. Sobre os Fundamentos do Leninismo. Extraído do site: https://www.marxists.org/portugues/stalin/1924/leninismo/index.htm, em 23/11/2020.